Antigo Egito

Feitiços de amor homoerótico em papiros egípcios

No mundo antigo a magia provia meios para auxiliar as pessoas a lidarem com os desafios da vida, quer fosse saúde, dinheiro, ou amor, como uma parte das estratégias das experiências diárias. Em alguns casos, feitiços eram escritos para certas pessoas, e eram nomeados dentro do texto tanto o alvo do feitiço quanto o seu usuário. Outros feitiços eram menos específicos, com marcadores de posição (‘fulano de tal’) em vez do nome, o que significava que poderiam ser usados por quem tivesse certa necessidade. Um exemplo desse tipo de feitiço é esse para atrair uma mulher. Nunca saberemos quem usou esse feitiço ou a identidade da mulher que era o alvo de seu desejo. Entretanto, com feitiços que nomeiam ambas as partes, temos um raro vislumbre da vida de indivíduos e – no caso de feitiços de amor – do desejo individual. E, num número pequeno de casos, feitiços de amor com nomes fornecem evidência clara de desejo pelo mesmo sexo.

Feitiços de amor entre mulheres

Em 1889, um pedaço de papiro relativamente pequeno, rasgado na parte inferior, foi encontrado no cemitério de Hawara, localizado na entrada do vale do Fayum. Datando do século II EC e escrito em grego, o texto em si é um feitiço de amor em que Herais, filha de Thermoutharin, conjura o espírito de um falecido (Evangelos) e os deuses para atrair e unir a ela Sarapias, filha de Helen. As almas errantes e inquietas dos falecidos eram frequentemente invocadas em feitiços, com a promessa de descanso eterno em troca de realizar certas exigências. Note como a combinação de deuses egípcios e gregos (Anúbis e Hermes respectivamente) reflete o mundo multicultural do Egito durante aquele tempo. No total, o refrão “para atrair e amarrar” é repetido três vezes e uma série de palavras mágicas, ou voces magicae, imbuem o feitiço com mais poder – elas teriam de ser compreensíveis para os seres invocados.

“Eu conjuro você, Evangelos, por Anúbis e Hermes e todo o resto abaixo; atraia e amarre Sarapias, que Helen concebeu, a essa Herais, que Thermoutharin concebeu, agora, agora; rápido, rápido. Pela alma e coração dela atraia a própria Sarapias, a quem <Helen> concebeu de seu próprio ventre. [palavras mágicas: MAEI OTE ELBOSATOK ALAOUBETO OEIO […] AEN]. …”

(Fonte: Papiro Hawara, inv. 312, PGM 32, University College London; tradução de Brooten, Love Between Women, p. 78)

Papiro Hawara 312. Foto: University College London.

Feitiços de amor entre homens

Avançando ainda mais no tempo, um texto copta num pedaço de pergaminho fornece o único exemplo naquela língua (em vez de grego) de um feitiço de amor entre homens. Infelizmente, a proveniência do feitiço é incerta, mas, o dialeto sugere algum lugar do Médio Egito e a data é aproximadamente os séculos VI-VII. Um homem chamado Apapolo, filho de Nooe, usa uma poderosa invocação para atrair outro homem, Phlo, filho de Maure. Phlo não conseguirá descansar até que encontre Apapolo e o desejo deste seja satisfeito. 

“[palavras mágicas: Celtatalbabal. Karašneife Nnas Kneife, pelo poder de Iao Sabaoth! Rous Rous Rous Rous Rous Rous Rous Rous]

Eu conjuro você por seus poderes e seus filactérios e os lugares sobre os quais você habita e seus nomes, da maneira que o levarei e o colocarei na porta e no caminho de Phlo, o filho de Maure, você dominará seu coração, sua mente (?), você controlará seu corpo todo! Se ele estiver em pé você não o deixará ficar em pé, se ele se sentar você não o deixará se sentar, se ele dormir você não o deixará dormir! Ele irá me procurar de vilarejo em vilarejo, de cidade em cidade, de campo em campo, de terra em terra, até que ele venha até mim e se submeta a meus pés – eu, Apapolo, o filho de Nooe – suas mãos cheias de coisas boas, até que eu realize com ele o desejo do meu coração e o pedido da minha alma, num desejo bom e uma afeição inquebrável, agora, agora, depressa, depressa, realize minha obra!”

(Fonte: Ashmolean Museum, Oxford, inv. AN 1981.940; tradução a partir da Kyprianos Database of Ancient Ritual Texts and Objects (KYP T19; por Love, Dosoo, Markéta)

Papiro AN 1981.940. Foto: Ashmolean Museum, Oxford.

Uma nota final

Uma nota final sobre as histórias contadas por esses feitiços é que eles nos levam à sua história moderna e às respostas que receberam dos estudiosos que os publicaram ou escreveram logo após sua publicação. Richard Wünsch argumentou que Herais, longe de tentar atrair Sarapia, estava de fato a amaldiçoando (e mais, que ela mesma estava morta, tendo sido ainda vítima de uma maldição). No caso do feitiço de Apapolo para atrair Phlo, o editor original Paul Smither, escrevendo em 1939, se referiu a “A embaraçosa identidade do sexo do encantador e do encantado…”. Em outros feitiços, não incluídos aqui, o gênero de uma das partes foi modificado pelos editores para criar situações heterossexuais – há um século, era mais fácil presumir um erro gramatical e pronomes não intencionais (frequentemente relacionados a nomes incomuns) do que compreender a situação envolvida. Mas, essa não é mais a posição aceita, e o que esses feitiços de amor mostram a nós é que a atração pelo mesmo sexo era uma coisa bem real no mundo antigo.

Agradecimentos: Gostaria de agradecer à equipe do Ashmolean Museum por ter prontamente nos enviado a imagem do Papiro AN 1981.940, que contem o segundo feitiço, e não está disponível na coleção online do museu. Thank you all, so much!

Traduzido e adaptado de:

CROMWELL, J. Ancient Same Sex Love Spells. Papyrus Stories, 15 jun. 2021. Disponível em: https://papyrus-stories.com/2021/06/15/ancient-same-sex-love-spells/. Acesso em: 28/06/21.

Indicações bibliográficas:

ARAÚJO, L. M. Erotismo e Sexualidade no Antigo Egito. Lisboa: Edições Colibri, 2012.

BROOTEN, B.J. Love between Women: Early Christian Responses to Female Homoeroticism. Chicago: Chicago University Press, 1996.

EL-QHAMID; TOLEDANO, J. Erotismo e sexualidade no antigo Egito. Barcelona: Folio, 2007.

GRAVES-BROWN, C. (Ed.). Sex and Gender in Ancient Egypt. Swansea:  The Classical Press of Wales, 2008.

MANNICHE, L. A vida sexual no Antigo Egito. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.

PINCH, G. Magic in ancient Egypt. 2. ed. rev. Austin, TX: University of Texas Press, 2010.

Leitura recomendada:



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Luiz Fernando P. Sampaio

Natural de Jacareí - SP, é bacharel e licenciado em História pela Unesp "Júlio de Mesquita Filho", FCHS, Franca - SP. Especializando em História Antiga e Medieval pelas Faculdades ITECNE, Curitiba, PR. Atualmente é professor da rede Estadual de Ensino de São Paulo e na rede privada, ministrando a disciplina de História. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3998141217790326.

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5 Comentários

  1. Excelente texto. Algo inerente dos seres, mas por questões das mais variadas ordens, “esquecido/alterado” para preservar o que se julgava “moral”. A capa escolhida (Khnumhotep e Niankhkhnum) para ilustrar o texto mostra bem o quão tentaram distorcer um fato tão claro sobre o relacionamento de ambos.

    1. Saudações Lucas! Agradeço pelo seu retorno. O campo de estudos de gênero, que tem crescido nos últimos 30 anos, é uma área riquíssima e muito necessária aos tempos em que vivemos. Escolhi a imagem da tumba dos dois porque foi o que me veio à cabeça – apesar das discussões e desacordos entre os especialistas sobre o tipo de relação que eles de fato tinham (penso que era uma relação homoafetiva mesmo!). Abraço e até breve.

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