Antigo Egito

Papiro registrou caso de brutalidade policial no Egito ptolomaico

Em 14 de Setembro de 194 a.C., o chefe de polícia do distrito de Polemon e vários outros homens deram uma batida na oficina de Petermouthis filho de Peteësis. O removeram de forma forçada de sua oficina, o arrastaram através do seu vilarejo, Oxyrhynchos, abusaram dele fisicamente e por fim levaram dinheiro e até a camisa de suas costas. Após receber o dinheiro (4 dracmas de prata e 1300 dracmas de bronze, mais um adicional de 44 dracmas de prata depositadas no banco em seu nome), os oficiais liberaram Petermouthis. Após sua libertação, o sapateiro escreveu uma petição ao oficial mais alto do distrito, o estratego Ptolemaios, recontando os maus tratos e solicitando socorro.

“Para Ptolemaios, syngenêsand stratêgos, de Petermouthis filho de Peteësis, 7-aroura machimos daqueles sob Chomenis, também um sapateiro aleijado daqueles de Tebtynis do distrito de Polemon, mas vivendo em Oxyrhynchos do mesmo distrito.

No primeiro dos dias intercalares de Mesore, ano 8, Dionysios, chefe de polícia (archiphylakitês) do distrito, ao chegar na aldeia e, entrar na minha oficina com Demetrios, e Apollonios o eisangeleus, e Teos e Nechthenibis e outros ephodoi, me apreenderam e me levaram através da vila, com toda forma de maus-tratos e insolência (hybris) e batidas, até a rua central da cidade. E não me libertaram antes de me arrancarem 4 dracmas de prata e 1300 dracmas de bronze; e eles forçaram Pnepheros filho de Horos, outro machimos, a depositar no banco em meu nome para ele (Dionysios) uma nota promissória pagável a Areios epispoudastês do distrito, por 44 dracmas de prata; e além disso forçaram o mesmo Areios a aceitar as supracitadas 44 dracmas de prata para ele (Dionysios), desdenhando de mim porque sou indefesso e aleijado. E também carregaram as roupas que eu estava usando.

Eu peço que você não me negligencie, mas se não parecer impróprio, por favor envie […]. E se isso acontecer, eu receberei socorro de você. Ano 8, dia intercalar 1 de Mesore. Adeus.”

 (Tradução levemente modificada de: John Bauschatz (2013) Law and Enforcement, p. 151)

Eisangeleus: literalmente “anunciador”, um subordinado de baixa patente dos oficiais da corte.

Ephedos (pl. ephedoi): literalmente “viajante”, um oficial que provavelmente trabalhava nas estradas e tinha deveres policiais, atuando como escolta para os oficiais da polícia.

Epispoudastês: um oficial de transporte de grãos.

Machimos: um soldado ou guarda com um loteamento de terra de 5, 7 ou 10 arouras, muito provavelmente de origem egípcia.

Stratêgos: oficial civil da mais alta patente nas províncias egípcias.

Syngenês: um título de corte.

Foto do papiro P.Coll. Youtie I 16 (c) Cologne, Papyrussammlung (P1448).

O relato de Petermouthis é visceral. Apresenta uso de força excessiva sendo exercida contra ele – além do chefe de polícia, Dionysius, quatro outros oficiais são nomeados, junto de um número incontável de ephedoi, uma categoria de oficiais com deveres policiais, que frequentemente atuavam como escolta para oficiais da polícia. Petermouthis foi pesadamente superado em número. Por que tais medidas foram tomadas contra Petermouthis, um homem que em suas próprias palavras era um “sapateiro aleijado”?

Como normalmente é o caso em tais petições, temos apenas o lado de Petermouthis da história, uma narrativa que não nomeia ou recorre ao testemunho de presentes. Não existe texto de contrapartida do chefe de polícia declarando as acusações contra Petermouthis ou o porquê do uso de tal força ter sido considerada necessária. A polícia naquele tempo tinha amplos poderes, incluindo a competência para confiscar bens, coletar impostos em atraso, prover controle das massas, e prender e deter transgressores. Dada a quantia de dinheiro envolvida, é bem possível que Dionysius estivesse lá para coletar débitos não pagos e, esperando resistência de Petermouthis (talvez baseado em interações prévias com ele), levou vários oficiais para dar apoio. Contudo, mesmo sem outras declarações, contraditórias ou corroborando, não parece que o fim justificasse os meios.

Esse relato é típico do policiamento no Egito Ptolemaico? Um número de textos desse período provê outros exemplos de brutalidade policial, incluindo tipos variados de corrupção, assim como exemplos de ineficiência policial, que incluem inação e respostas demoradas. A evidência que sobrevive, juntamente com o funcionamento efetivo do serviço policial, é coletada por John Bauschatz e seu estudo sobre lei e execução no Egito Ptolemaico (ver “Detalhes técnicos”). Bauschatz conclui que o mau comportamento policial no geral parece ter sido mínimo naquele tempo, e que o sistema no geral funcionava bem, especialmente à luz das dificuldades enfrentadas (em particular em termos de comunicação, bem como pelos amplos poderes exercidos pelos oficiais).

Todavia, enquanto o sistema deve ter funcionado bem em muitas ocasiões, oficiais corruptos e violência policial ainda eram parte da vida e uma ameaça muito real nos vilarejos por toda a zona rural egípcia.   

**Existe uma literatura considerável sobre violência e corrupção no Egito Ptolomaico e Romano tardio; por exemplo, além dos trabalhos de Bauschatz, ver os estudos seguintes:

ALSTON, R. Violence and Social Control in Roman Egypt. Proceedings of the 20th International Congress of Papyrologists, Copenhagen, 23 August, 1992, ed. Adam Bülow-Jacobsen (Copenhagen), p. 517–21, 1992.

BAGNALL, R. S. Official and Private Violence in Roman Egypt. Bulletin of the American Society of Papyrologists, v.26, n.3/4, p. 201–216, 1989.

BRYEN, A. Z. Violence in Roman Egypt: A Study in Legal Interpretation. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2013.

Detalhes técnicos

Proveniência: Faium, Egito

Data: 14 de Setembro de 109 AEC (note, o ano é incerto).

Língua: Grego.

Coleção: Coleção de Papiros de Colônia / Papyrussammlung (P.1448).

Designação: P.Coll.Youtie I 16 (segundo a Lista de Edições)

Bibliografia:

BAUSCHATZ, J. The Strong Arm of the Law? Police Corruption in Ptolemaic Egypt. The Classical Journal, n. 103/1, p. 13–39, 2007.

___________. Law and Enforcement in Ptolemaic Egypt. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 151–152.

Traduzido de:

CROMWEEL, J. Police Brutality in Ptolemaic Egypt. Papyrus Stories, 5 de Jun. 2020. Disponível em: https://papyrus-stories.com/2020/06/05/police-brutality-in-ptolemaic-egypt/ . Acesso em: 14/06/20.

Leitura recomendada:



icon

Luiz Fernando P. Sampaio

Natural de Jacareí - SP, é bacharel e licenciado em História pela Unesp "Júlio de Mesquita Filho", FCHS, Franca - SP. Especializando em História Antiga e Medieval pelas Faculdades ITECNE, Curitiba, PR. Atualmente é professor da rede Estadual de Ensino de São Paulo e na rede privada, ministrando a disciplina de História. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3998141217790326.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo