Antigo Egito

Papiro copta traz oração para proteção de bebês contra doenças

Os cristãos do Egito recebiam bençãos da igreja de muitas formas: orações de inclinação ao final da eucaristia, quando o celebrante abençoava a congregação antes de partirem, bençãos privadas emitidas por monges sagrados, ou bençãos materiais (eulogiai), tal como o óleo de um centro de peregrinação. Haviam bençãos para a congregação, mas também para a casa, para os animais, ou para as crianças.

Um papiro hoje em Viena, P.Vindob. K 70, pode ser identificado como um exemplo dessa última: uma benção para criança. Foi escrita em dialeto faiúnico do Copta, o que assegura sua proveniência do semi-oásis [do Faium] e pode ser datada do século nono. Seu editor, Victor Stegemann a descreveu como uma “oração para cura de uma pessoa doente”, em particular de uma criança doente, à medida que pede cura para um número de doenças:

“…em tua presença, faça-o crescer e cuide dele no bem, preencha-o com sabedoria e com a compreensão da sabedoria. Abra as faculdades do seu coração para que possa conhecer todas as coisas… Que seus pais se alegrem com seu crescimento! Conte-o entre o rebanho de Cristo, pois tu és o Senhor desde o princípio, fizeste o homem segundo tua forma e tua imagem! Tome toda a doença e o fôlego dessa pequena criança, o que quer que seja… ou uma febre, ou um mau olhado, ou uma doença má, tome-os dele, abençoe-o com saúde, pois tu és o Senhor, de quem vem a cura de toda doença e sois tu quem curas almas e corpos e espíritos através da graça do amor da humanidade do vosso filho unigênito Jesus Cristo, nosso Senhor, Ele por quem a glória é dada a ti e o Espírito Santo, agora e em todos os tempos, por todas as eras das eras, amém”.

Traduzido por Edward O.D. Love para a base de dados Kyprianos do Coptic Magical Papyrus Project, com edições.

Baixo relevo mostrando o nascimento de Hórus (centro), sobre uma cama. Templo de Ísis em Philae. Assuã, Nubia, Egito. Foto: Luiz F. P. Sampaio, Jan. 2019.

Certas frases ficam estranhas na interpretação de Stagemann para uma oração de cura. Por que uma oração de cura pede a Deus para “preencher [a criança] com sabedoria”, para que “abra as faculdades do seu coração para que possa conhecer todas as coisas”, para permitir que “seus pais se alegrem com seu crescimento”, ou para que “conte-o entre o rebanho de Cristo”? A resposta a essa questão vem de orações paralelas em outras línguas, que nos ajudam a compreender esse papiro copta. Numa coleção canônico-litúrgica que deriva da Alexandria do século V ou VI, mas que está preservada num códice do século XIII, existe uma “oração do infante” que solicita coisas parecidas (crescimento e saúde) para um bebê recém-nascido. Ele também especifica a ocasião em que a oração é recitada: a referência “este quem eles trouxeram para você” designa uma oração recitada na apresentação do bebê na igreja. Esse rito, conhecido como ekklesiasmos ou apresentação, acontecia no 14° dia após o nascimento.

Pia batismal em exposição na Igreja copta de Abu Serga, do séc. IV. Bairro copta, Cairo, Egito. Foto: Luiz F. P. Sampaio, Jan. 2019.

Para a apresentação da criança, os livros impressos do rito bizantino mostram três orações diferentes, cujo foco é o batismo iminente da criança. Os bizantinos também desenvolveram um conjunto complexo de orações para as primeiras semanas após o nascimento: além de uma oração para a nomeação no oitavo dia, já atestada no século XVIII, livros de oração tardios adicionaram uma oração de purificação da mãe no quadragésimo dia e orações para o dia do nascimento recitada em casa. Nas fontes egípcias da antiguidade tardia e dos primeiros tempos medievais, não foram identificadas orações correspondentes, mas no rito copta contemporâneo existe uma cerimônia de absolvição da mãe e nomeação para o bebê chamada de ‘oração da bacia’. 

A oração no P.Vindob. K 70, muito embora tenha a intenção de marcar a integração da criança à comunidade cristã, se relaciona menos com o batismo e mais com o bem estar e saúde da criança. Em particular, pede a Deus para levar “toda a doença e o fôlego dessa pequena criança”. A expressão ‘fôlego’ é difícil de se interpretar nesse contexto. A palavra copta também significa ‘sopro’, ‘vento’; poderia se referir à condição de cólicas que tão frequentemente aflige recém-nascidos e seus pais, e se manifesta nos gases dos bebês?

O caráter apotropaico e terapêutico do texto levou Stegemann a incluir essa oração em sua coleção de textos mágicos, embora ele tenha observado devidamente o caráter litúrgico do texto e sugerido que era uma benção litúrgica, o que o paralelo confirma. A inclusão dessa oração entre textos mágicos nos lembra da relação complexa entre orações litúrgicas e mágicas. Enquanto os dois tipos de textos apresentam claramente traços textuais distinguíveis, eles podem se relacionar por ter preocupações similares: cura, exorcismo, nascimento, fertilidade, colheita, pureza ritual. No rito bizantino, um grande número de ‘orações casuais’ evoluiu para uma ampla variedade de preocupações, incluindo o primeiro passo da criança e o lançamento de um barco. Estes rituais estão sendo estudados pelo Vienna Euchologia Project, sobre o qual você pode ler mais aqui. O rito copta tem consideravelmente menos orações como essas, deixando uma grande área para o termo ‘mágico’, embora como mostra o P.Vindob. K 70, também haviam soluções litúrgicas para a eterna preocupação com o bem-estar de um bebê.

Foto do P.Vindob.K 70 (c). Österreichische Nationalbibliothek, Wien, Áustria.

Detalhes técnicos

Proveniência: Faium

Data: século IX a.C.

Língua: Copta (Faiúnico)

Coleção: Viena, Biblioteca Nacional Austríaca, Coleção de Papiros (P.Vindob. K 70)

Designação: P.Vindob. K 70

Bibliografia:

Viktor Stegemann (1934), Die koptischen Zaubertexte der Sammlung Papyrus Erzherzog Rainer in Wien. Sitzungsberichte der Heidelberger Akademie der Wissenschaften. Philosophisch-historische Klasse, 1933-34 n°1(Heidelberg), pp. 26 & 63–67, pl. 3, no. XLIII (106); Viktor Stegemann and Walter Till (1935), “Zu den Wiener koptischen Zaubertexten,” Orientalia4: 195–221 [pp. 214–215, no. XLII].

Bibliografia adicional:

Sobre a coleção litúrgica etíope, ver Alessandro Bausi (2006), “La collezione aksumita canonico-liturgica,” Adamantius 12: 43–70. The text is currently being edited by Alessandro Bausi, to whom I owe the information on the prayer.

Sobre o ritual atual de absolvição da mulher e a cerimônia de nomeação, ver KHS O. H. E. Burmester (1967), The Egyptian or Coptic Church: A Detailed Description of Her Liturgical Services and the Rites and Ceremonies Observed in the Administration of Her Sacraments(Cairo), pp. 112–114.

Sobre orações para crianças recém-nascidas, ver Eirini Afentoulidou, Claudia Rapp, Daniel Galadza, Ilias Nesseris, Giulia Rossetto and Elisabeth Schiffer (2017), “Byzantine Prayer Books as Sources for Social History and Daily Life,” Jahrbuch der österreichischen Byzantinistik 67: 200–203

Traduzido de:

JCROMWELL. Blessing a Baby Against Every Illness. Papyrus Stories. Jun. 2020. Disponível em: https://papyrus-stories.com/2020/06/11/blessing-a-baby-against-every-illness/. Acesso em: 11/06/20.

Leitura recomendada:



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Luiz Fernando P. Sampaio

Natural de Jacareí - SP, é bacharel e licenciado em História pela Unesp "Júlio de Mesquita Filho", FCHS, Franca - SP. Especializando em História Antiga e Medieval pelas Faculdades ITECNE, Curitiba, PR. Atualmente é professor da rede Estadual de Ensino de São Paulo e na rede privada, ministrando a disciplina de História. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3998141217790326.

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